A tendência ao monopólio é uma das
principais características do mercado de jornais. Isso porque as
barreiras de entrada para o ingresso de novos agentes neste segmento
são de grande magnitude. Uma delas é o acesso à matéria-prima
básica para a existência da atividade econômica – o papel
jornal.
No Brasil, a multinacional Norke Skog é
a única fabricante de papel-jornal, que atende todo o país,
vendendo para os principais jornais. Parte do consumo nacional ainda
vem da importação, principalmente do Canadá.
Apesar da falta de concorrência, um
aspecto importante a ser observado na cadeia de produção do jornal
no Brasil é a não existência da propriedade cruzada nesta fase, ou
seja, quem produz a matéria-prima não é o mesmo grupo empresarial
que produz o conteúdo.
Monopólio na produção de matéria-prima e conteúdo
Na Argentina, há também uma única
indústria produtora de papel-jornal, a Papel Prensa, empresa de
iniciativa privada que na década de 70 foi alvo de uma transação
comercial, patrocinada pela ditadura, que resultou na compra, por
parte dos grupos Clarín e La Nación de 61% das ações da empresa.
Esta transação é objeto de investigação por parte da Justiça
argentina.
Então, enquanto no Brasil o monopólio
da produção está nas mãos de um agente econômico, digamos
independente, na Argentina os proprietários da única fábrica de
papel-jornal são os dois maiores grupos de comunicação (produtores
de conteúdo) do país – Clarín com 49% das ações e La Nación
com 22%. O Estado possuí 27,49% das ações.
Esta propriedade cruzada é sem dúvida
nenhuma um risco à pluralidade e à diversidade da informação na
Argentina, uma vez que quem controla a matéria-prima tem interesses
comerciais para além da venda do papel.
Visto o cenário, não é de se
estranhar que a iniciativa da presidente Cristina Kirchner – de
apresentar um projeto que declara de "interesse público" a
produção, comercialização e distribuição de papel-jornal na
Argentina – tenha desagradado aos grupos Clarín e La Nación, que
terão de vender suas ações caso o projeto seja aprovado, já que as novas normas proíbem que
empresas de jornais impressos possam ter ações na Papel Prensa.
Mídia brasileira solidária aos colegas argentinos
A
cobertura da mídia brasileira sobre o assunto foi repugnante. Mais uma vez se absteve de
fazer um jornalismo isento, levando ao público as informações que
envolvem a situação no país vizinho.
A imprensa brasileira
omitiu que o projeto é fruto de dezenas de audiências públicas que
foram realizadas em toda a Argentina e que envolveram a sociedade e
proprietários de mais de 120 jornais. Ignorou que a Papel Prensa é alvo de denúncias por praticar preços diferenciados e abusivos de acordo com o veículo. Não informou que o projeto prevê que os
preços do papel-jornal praticados passarão a ser os mesmos para todos os
veículos (sem privilégios) o que irá garantir a democratização do acesso à
matéria-prima para a produção dos jornais.
Ao invés disso, fizeram uma cobertura
que reproduz os interesses dos seus “colegas” argentinos,
repetindo o mantra de que a medida do governo argentino é
anti-democrática e estatizante e promoverá o controle da imprensa.
Respeitando as leis de mercado
Tornar a matéria-prima para a
fabricação de jornal um bem de interesse público, impedindo que os
grupos de comunicação continuem no controle da Papel Prensa, é
sobretudo uma medida democrática, inclusive do ponto de vista das
leis do mercado, que em várias convenções internacionais restringe
a propriedade cruzada e monopólio para garantir a “livre
concorrência”.
Portanto, a medida do governo argentino
enquadra esta atividade econômica nas leis de mercado. Como
assinalou o irmão da viúva do ex-proprietário da Papel Prensa,
Osvaldo Papaleo. Para ele, se a lei for aprovada, ela acabará com
“um monopólio nas mãos de dois diários, um fato inverossímil no
mundo que viola as leis comerciais”.
Ameaça à liberdade de imprensa?
Bom, mas espera um pouco, quem passa a
controlar a produção de papel é o Estado e isso é uma ameaça a
democracia. Este é o argumento que está sendo utilizado pelos veículos de comunicação e
organismos de associação destes veículos como a Associação
Nacional de Jornais (ANJ), que emitiu nota afirmando que o projeto
"dará ao governo argentino o poder de limitar o acesso das
empresas jornalísticas ao papel, numa evidente ameaça à liberdade
de imprensa".
Nessa linha de argumentação, evocam a
Convenção Americana de Direitos Humanos – o Pacto de San José de
Costa Rica –, que proíbe expressamente a aplicação de controles
sobre papel jornal.
Mas o que diz esta convenção?
Em seu Artigo 13º, que trata da
Liberdade de pensamento e de expressão, ela preconiza:
1. Toda pessoa tem direito à liberdade
de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de
buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza,
sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em
forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua
escolha.
2. O exercício do direito previsto no
inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a
responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas
pela lei e ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à
reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional,
da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito
de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de
controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de
freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados
na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios
destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e
opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos
públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o
acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência,
sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda a propaganda
a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial
ou religioso que constitua incitação à discriminação, à
hostilidade, ao crime ou à violência.
Mas na Argentina o papel-jornal não
estava submetido ao controle particular dos donos dos principais
jornais do país? É como se no Brasil a Norke Skog fosse controlada
pelo Estadão e pela Folha. Num cenário desse, não poderia haver
restrição à liberdade de expressão? Isso não seria uma
preocupante barreira de entrada para novos agentes atuarem no
segmento do jornal imprenso? Na Argentina, das últimas décadas, o controle da Papel Prensa pelo Clarín e La Nación tem sido, na prática, um fator limitante para o surgimento de novos jornais e inclusive para a sobrevivência de outros. Isso não se diz. Porque será?
A visão de que o Estado é por si só
e de antemão um inimigo da democracia é oportunamente plantada e
repetida pelo capitalismo, que atualmente tem recorrido ao socorro do
Estado para sobreviver.
Com os mecanismos sociais de participação
adequados e regras transparentes - que estão previstos no projeto apresentado - a iniciativa de Cristina Kirchner é
mais um passo fundamental que o governo argentino dá no sentido de
democratizar os meios de comunicação no país. E isso, incomoda muita gente, lá na Argentina e aqui no Brasil.
A imprensa brasileira só faz o que sempre fez, ou seja, defende seus interesses. A ideia de uma imprensa livre, que cumpra sua função de interesse público, é algo impensável no mundo das grandes corporações de mídia. Para essa gente, livre é aquilo onde o estado não se mete, por mais estapafúrdio que seja entender que uma instância representativa de um povo (ainda que extremamente distorcido)seja mais opressora que grupos particulares que defendem seus próprios interesses.
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