Lei de Serviços Audiovisuais é o primeiro desafio de Tabaré |
Aprovar a lei de serviços audiovisuais ainda em 2014 é um
compromisso da Frente Ampla, que tem o apoio de Tabaré Vázquez, eleito para
presidir o país até 2020. Para Gabriel Mazzarovich, um dos integrantes da
Coalizão por uma Comunicação Democrática, é preciso mobilizar a sociedade para
garantir a aprovação da lei.
Por Renata Mielli, para o ComunicaSul
No dia 30 de novembro, a Frente Ampla elegeu Tabaré Vázquez
para comandar o Uruguai até 2020. O resultado das urnas mostrou que as
políticas de desenvolvimento local e de ampliação de direitos trabalhistas e
sociais desenvolvidas nos últimos 10 anos (primeiro com Tabaré e depois com
Pepe Mujica) foram aprovadas pelos uruguaios. E a agenda política que saiu
vitoriosa das urnas sinaliza para a ampliação de direitos e adoção de políticas
para aprofundar ainda mais a democracia. Nesse contexto, uma das primeiras e
mais polêmicas agendas a serem enfrentadas, ainda neste ano, é a discussão no
Senado da Lei de Serviços Audiovisuais.
Pouco antes do primeiro turno da eleição, estive no Uruguai
e entrevistei o jornalista Gabriel Mazzarovich sobre as dificuldades em se
fazer avançar a agenda da democratização da comunicação no Uruguai. As
similaridades com os problemas que enfrentamos no Brasil são muitas. Inclusive
no discurso blocado dos “barões da mídia uruguaia”, que como nos disse
Mazzarovich é a de que “a melhor lei de meios é a que não existe”.
Por isso, assim
que perceberam a franca maioria da Frente Ampla no parlamento e o favoritismo
de Vázquez, os empresários dos meios de comunicação no Uruguai rapidamente se
mobilizaram para manifestar seu repúdio ao projeto de lei construído pela
Frente Ampla com apoio das entidades que participam da Coalização por uma
Comunicação Democrática. O Diário El País estampou manchete nesta segunda-feira(01/12) destacando a posição da Associação Nacional dos Radiodifusores
Uruguaios que taxa a proposta em tramitação no Senado de autoritária. “Em
regimes autoritários da história do homem, como os fascistas, os mussolinistas
e os stalinistas, ou em Cuba que não há liberdade para nada, ou na Venezuela
onde estão fechando os veículos, há leis desse tipo”, afirmou o presidente da Andebu,
Pedro Abuchalja. A reação é claramente uma tentativa de obstruir o debate, que
contou com o apoio explícito do presidente eleito.
Se há uma clara semelhança entre a postura dos donos da
mídia lá e aqui no Brasil, uma diferença entre a situação brasileira e a
uruguaia nesta pauta é gritante e nos coloca, brasileiros, em grande
desvantagem: no Uruguai há um projeto de lei tramitando no Congresso, já
aprovado pelos deputados e aguardando votação no Senado, onde a Frente Ampla
tem maioria para aprovar a proposta que conta com o apoio do atual presidente e
do presidente eleito. Leia mais sobre o apoio de Vásquez ao projeto aqui.
Mas, apesar do compromisso em votar o projeto ainda este
ano, a luta política em torno da democratização da comunicação no Uruguai ainda
tem um vasto caminho que passa, necessariamente, como alertou Gabriel
Mazzarovich pela mobilização da sociedade em torno desta pauta, que é estratégica
para qualquer projeto de poder.
ComunicaSul: Como está atualmente o debate sobre a comunicação
no Uruguai?
Gabriel Mazzarovich |
Gabriel Mazzarovich: No Uruguai, assim como no mundo inteiro, o tema dos meios de
comunicação para a esquerda e para o movimento popular é um tema que apenas
recentemente vem sendo tratado como um problema estratégico. Muitos dos nossos
companheiros dizem que há governos que governam bem, mas que têm problemas de
comunicação. Nós dizermos que se a esquerda tem problema de comunicação, então
governa mal. Comunicar é parte de governar e é parte de fazer política, sempre
foi, mas nesta sociedade é muito mais. A democratização da sociedade é
estratégia de poder e para fazer o debate da democratização da comunicação é
preciso discutir poder. Há setores da esquerda e do movimento popular uruguaio
que sequer o reivindicam, que a sua perspectiva estratégica é um programa de
governo de cinco anos. Mas a nossa perspectiva estratégica é a revolução,
portanto é uma perspectiva estratégica histórica e que necessita da
democratização dos meios de comunicação, porque eles são um ponto central do
poder. Não há democratização da sociedade possível e nem qualquer projeto de
esquerda que implique na ampliação dos direitos sem a democratização dos meios
de comunicação.
ComunicaSul: E como este debate está organizado na sociedade uruguaia?
Gabriel Mazzarovich: Temos no Uruguai a Coalização por uma Comunicação Democrática,
um espaço muito amplo que integra o movimento sindical, as faculdades de
comunicação, sindicatos de jornalistas, mas que tem tratado do assunto como um
tema de lobby, realizando grandes seminários. Isso é muito importantes, mas nós
estamos convencidos de que se não colocarmos milhares de pessoas nas ruas para
lutar por esta pauta não teremos êxito. Porque os grandes meios de comunicação
são os reis do lobby, eles o inventaram. Por isso temos que ter milhares de
pessoas nas ruas.
ComunicaSul: E nos dez anos de governo da FA não houve avanços na pauta
da Comunicação?
Gabriel Mazzarovich: O que mudou nos últimos anos. Nós, no Uruguai, temos um
sistema de meios de comunicação parecido com o de outros países da América
Latina, e que pode ser definido por quatro palavras: privado, comercial,
concentrado e estrangeirizado. É uma merda. Um desserviço para a democracia
uruguaia. No Uruguai vivemos num país capitalista, a propriedade capitalista
está garantida pela Constituição, e existe propriedade capitalista em todos os
setores da economia, menos na Comunicação. Na Comunicação a propriedade é
feudal. As concessões de radiodifusão existentes foram outorgadas sem nenhum
tipo de concurso e não têm fim, não têm prazo para acabar; 60% das concessões de
rádio que existem no Uruguai foram outorgadas pela ditadura e ainda seguem
vigentes. A direita segue sempre com o mesmo discurso que a melhor lei de meios
é a que não existe. É mentira. No Uruguai existe uma lei de meios, é o único
setor do Uruguai que continua sendo orientado por uma lei da ditadura. Mesmo com a recuperação democrática e 10 anos
de governo de esquerda não conseguimos revogá-la. Não conseguimos mudar essa
maldita lei da ditadura. Mas ainda assim, no governo da FA foram feitas várias
coisas. A primeira foi a lei das
radiocomunitárias, que é um avanço histórico para o Uruguai no qual o Estado
deixou de ser repressivo e passou a ser um Estado com ambição de inclusão. A
lei estabelece pela primeira vez nas leis uruguaias três espaços para os meios
de comunicação: o espaço privado, o espaço comunitário e o espaço público e
estabelece que estes espaços devam ser equivalentes. Isso foi fundamental
porque aqui se criou o antecedente para todo o resto. Hoje, 95% das rádios são
privadas e 80% dos canais também. Todas as novas frequências estão sendo alocadas
para as rádios comunitárias e para aumentar a presença das rádios públicas.
Falta muito, mas efetivamente criamos este espaço. O governo da Frente Ampla
estabeleceu por decreto presidencial -- por isso é tão importante a lei de
serviços audiovisuais, já que decreto pode ser mudado por outro presidente –
que é obrigatório haver licitação e audiências públicas para destinar as novas
frequências e ainda proíbe a entrega de frequências radioelétricas um ano antes
das eleições e seis meses depois de assumir o mandato. Porque é neste período
que elas são repartidas para favorecer a cobertura da campanha e para dar os
serviços aos candidatos e a FA é a única força política que não fez isso. Outro
tema principal é o decreto da TV Digital, que definiu a distribuição das novas
frequências da TV Digital a partir de um concurso público, que teve os seus
problemas, mas que foi um concurso público, com audiência pública, os
pleiteantes tiveram que apresentar um projeto de comunicação, foram julgados, e
as concessões têm prazo para terminar (25 anos). Além disso, a cada 5 anos as
emissoras serão submetidas a uma avaliação e se não cumpriram com seus planos
de investimento e programação podem ter suas outorgas canceladas. Mas, mesmo
com essas medidas, nós reiteramos que precisamos de uma nova lei de serviços
audiovisuais porque ela é um instrumento legal e tem um peso que não têm os
decretos.
ComunicaSul: E o que propõe a Lei de Serviços Audiovisuais?
Gabriel Mazzarovich: A lei de serviços audiovisuais é muito mais ampla. Ela outorga
pela primeira vez direitos à audiência, cria-se a figura do defensor da
audiência, estabelece a participação dos trabalhadores no acompanhamento da
lei, estabelece que as emissoras devam respeitar os direitos trabalhistas e a
liberdade sindical. Pela lei fica obrigada a reserva de uma porcentagem da
programação para exibição de conteúdo nacional, estabelece critérios de como se
devem dar as notícias de violência para proteger os direitos das crianças e
adolescentes, estabelece prazos para a vigência das outorgas e estabeleces a
divisão do espectro em terços: 1/3 privado; 1/3 comunitária e 1/3 pública. E
mais, se não for possível ocupar o espectro reservado para o campo comunitário
e público, porque não existiram propostas, esses espaços não podem ser oferecidos
aos meios privados, eles se mantêm em reserva até que se tenha uma proposta
comunitária e pública. O privado fica limitado a 1/3 do espectro. Este é o
projeto de lei que o parlamento está discutindo, que já tem a aprovação dos
deputados e agora resta ser aprovado pelo Senado.
ComunicaSul: E como é o cenário das Telecomunicações? O serviço no
Uruguai é público certo?
Gabriel Mazzarovich: Sim. Nós temos uma coisa distintiva no Uruguai. Ainda
durante a ditadura se criou Antel como ente das telecomunicações. Porque os milicos
já tinham claríssimo, eles sim tinham estratégia de poder. Nós mantemos com
vocês (privados) os meios de comunicação e cuidamos das telecomunicações, que
são o futuro. E é lindo nós termos uma
empresa de telecomunicação estatal, estratégica, e que é central para qualquer
projeto de desenvolvimento. Por isso, nós temos que defendê-la. A Argentina não
tem, está inventando. Todas as empresas de telecomunicações na Argentina são
privadas, todas. Inclusive a plataforma pela qual vai circular a muito boa lei
de meios que eles têm é toda privada. Eles não têm nada público. Aqui é o contrário,
tudo é público, e o setor privado terá a obrigação de pagar para as empresas
públicas para utilizar a plataforma digital. E na nossa proposta de lei
agregamos uma coisa que é única no mundo, que se chama proibição cruzada. A lei
tem um artigo que estabelece que as empresas que sejam concessionárias de ondas
de televisão são proibidas de terem empresas telefônicas, e as empresas
telefônicas são proibidas de terem concessão de radiodifusão. Por exemplo, no
caso do Peru, a Movistar e Claro são donas de todas as televisões peruanas.
Isso é o que se está passando no mundo. Por isso, o Uruguai enfrenta processos
da Organização Mundial do Comércio e de outras cortes internacionais por violar
a liberdade comercial, os tratados comerciais. Esse é o centro da disputa hoje,
porque eles querem destroçar a Antel e dar mais poder a esta tropa. Então, essa
é a lei pesada que estamos discutindo no parlamento hoje, mas que os deputados
conseguiram aprová-la depois de um debate de dois anos. Foram feitas inúmeras
modificações no projeto original de lei, algumas inclusive impulsionadas por
nós, para aperfeiçoá-lo. Por exemplo, introduzimos a proposta de se criar um
conselho independente que ficará encarregado de fazer a gestão de todos os
temas relacionados ao assunto. No projeto original da FA não havia esse
conselho. (Veja mais sobre as alterações aqui)
ComunicaSul: E qual a sua perspectiva para a aprovação do projeto de lei
dos serviços audiovisuais?
Gabriel Mazzarovich: O compromisso de Mujica e Tabaré é de votar depois das
eleições. Queríamos votar antes de outubro. Apresentamos o projeto dois anos
antes das eleições para que fosse votado antes. Mas não conseguimos colocar a
massa lutando por ele. Se conseguirmos aprová-lo será um passo histórico para o
uruguaio. O debate sobre o conteúdo da lei de serviços audiovisuais avançou
muito no governo da FA. Mas veja, tivemos experiências fundamentais neste
último período. Aprovamos no Uruguai a lei de responsabilidade penal
empresarial, que é uma lei pesada, dura, uma das mais importantes que foram votadas
no Uruguai. Também a lei de negociação coletiva e a lei que anula a lei da
impunidade. Estas talvez tenham sido as três leis mais pesadas votadas no
Uruguai. Elas representam um passo contra-hegemônico dos trabalhadores e da
esquerda e por isso sofreram tanta resistência dos empresários, como se fossem
uma revolução. Porque foram aprovadas? Porque houve uma pressão gigantesca para
serem aprovadas. A bancada da esquerda mudou cinco vezes o seu voto. Começamos
perdendo de 15 a 1 e terminamos ganhando de 12 a 5. Saiu porque tivemos 350 mil
assinaturas, porque tivemos mais de 35 mil trabalhadores nas ruas e mais de mil
assembleias de trabalhadores. Outras leis importantes que podemos usar de
exemplo são a lei do matrimônio igualitário e da regulação da maconha. Elas
representaram uma ampliação de direitos enorme, em uma sociedade hipócrita como
essa, com toda a Igreja Católica e Evangélica lutando contra as duas, com a esquerda
na dúvida se apoiava ou não. Porque saiu? Porque existiu um movimento popular
pujante e novo que foi às ruas com mais de 30 mil pessoas defendendo essas
bandeiras. O que aconteceu com a lei de serviços audiovisuais. Teve um debate
programático na Frente Ampla, tem fundamentos de sobra, todos os debates que
fizemos nós ganhamos, todos. Então, porque os donos dos meios de comunicação
conseguiram trancar essa discussão? Porque neste processo não conseguimos
mobilizar nem 10 pessoas para defender essa lei aqui no Uruguai. O dia em que
se discutiu esse tema no Congresso éramos 20 pessoas nas galerias. Então, o
tema da correlação de forças e da base social que é necessária para essa lei se
tornar realidade é central. Este é o problema que nós estamos enfrentando
agora, criar uma base social que dê respaldo para a lei, criar uma onda para todo
movimento popular uruguaio tomar isso como bandeira central.
Nenhum comentário:
Postar um comentário