1.4.09

Janela sobre um período de sombras - a ditadura militar

Fiquei pensando como registrar neste espaço os 45 anos do golpe militar que mergulhou o Brasil numa ditadura que perdurou por trinta anos. A primeira certeza que tive foi a de que não queria fazer uma tese, um discurso para se somar aos milhares já existentes. Mais uma vez, recorri ao inspirador dessa Janela, Eduardo Galeano, para trazer um pensamento sobre esse assunto tão dolorido, mas tão necessário. Porque da sua lembrança tiramos lições e reiteramos cotidianamente a necessidade de construirmos nossa democracia, cheia de imperfeições, mas que precisa ser reafirmada e aprimorada.

Palavras Perdidas

Pelas noites, Avel de Alencar cumpria sua missão proibida.
Escondido num escritório de Brasília, ele fotocopiava, noite após noite, os papéis secretos dos serviços militares de segurança: relatórios, fichas e expedientes que chamavam de interrogatório as torturas e de choques armados os assassinatos.

Em três anos de trabalho clandestino, Avel fotocopiou um milhão de páginas. Um confessionário bastante completo da ditadura que estava vivendo seus últimos tempos no poder absoluto sobre as vidas e os milagres do Brasil inteiro.

Certa noite, entre as páginas da documentação militar, Avel descobriu uma carta. A carta tinha sido escrita quinze anos antes, mas o beijo que a assinava, com lábios de mulher, estava intacto.

A partir de então, ele encontrou muitas cartas. Cada uma estava acompanhada pelo envelope que não tinha chegado ao destino.

Ele não sabia o que fazer. Havia-se passado um longo tempo. Ninguém mais aguardava aquelas mensagens, palavras enviadas pelos esquecidos e pelos idos a lugares que já não eram e a pessoas que já não estavam. Eram letra morta. E, no entanto, quando lia, Avel sentia que estava cometendo uma violação. Ele não podia devolver aquelas palavras ao cárcere dos arquivos, nem podia assassiná-las rasgando-as.

No final de cada noite, Avel metia em seus envelopes as cartas que tinha encontrado, punha novos selos e as colocava no correrio.

Eduardo Galeano, no Livro Bocas do Tempo

Um comentário:

  1. Avel de Alencar11:47 AM

    Oi Renata estava navegando no google e me deparei com seu texto.
    Quero informar que está crônica do Galeano foi inspirada no projeto que originou o livro "Brasil Nunca Mais" coordenado por D. Paulo Evaristo Arns. Um abraço, Avel.

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