Ao tomar a decisão de criar a Empresa Brasil de Comunicação, o governo federal preencheu uma lacuna histórica no sistema de radiodifusão do país e cumpriu uma determinação constitucional de que esse sistema deveria observar a complementaridade entre o público, o estatal e o privado – que desde 1988 era desrespeitada.
A construção de um sistema público – praticamente do zero – encerra desafios em todas as suas fases: desde a definição comum do conceito de rede pública, passando por questões relacionadas à forma de gestão, programação, composição de recursos financeiros e humanos, construção de infraestrutura, diálogo com a sociedade para definição de como se dará a participação desta em todas as etapas, conquista de audiência, isso para citar apenas alguns desafios.
Esse processo ocorre num determinado contexto político e econômico. No aspecto político é preciso considerar que há uma disputa de dois projetos para o Brasil que cinde a sociedade, ainda que discretamente, em duas. Há um setor que projeta um rumo de desenvolvimento e soberania para o país, com ampliação da democracia, dos direitos sociais e humanos, observando uma política internacional independente e de integração com a América Latina, que pressupõe o fortalecimento do Estado como ente indutor de políticas. Do outro lado, há um setor que prega a desregulamentação geral, com redução de direitos sociais, abertura para a ação autorreguladora do mercado em todas as esferas da sociedade, privilegia as relações comerciais de dependência com os países ricos, rejeita as políticas de autodeterminação e soberania dos países vizinhos e é avesso à ampliação da participação da sociedade na definição de políticas para o país.
Desvio de rota
Essa divisão, claro, apresenta nuances e não está cristalizada em todos os estratos da sociedade. Em muitos casos, essas posições se misturam e adquirem uma face híbrida. E isso está presente dentro e fora do governo. Ou seja, a falta de clareza e de convicções em setores que ocupam posição estratégica no governo contribui para frear iniciativas e trazer confusão na hora da aplicação de políticas.
Esse problema se reflete na construção da EBC. Apesar de ter sido constituída a partir de um debate amplo que reuniu sociedade e governo, que avançou bastante na elaboração e delineamento do perfil da nova rede, na hora de implementar a decisão o governo deixou de lado vários aspectos que haviam sido consensuados, como a forma de gestão e a composição do Conselho Curador, para ficar apenas nestes dois exemplos.
Desafios estruturais
No aspecto econômico, os desafios são imensos, já que a criação da EBC se dá numa quadra de crise econômica internacional, com impactos em vários setores da economia, com redução do crédito, grande flutuação de câmbio e incertezas internacionais. Isso tem reflexo direto na criação da EBC. A empresa nasceu da fusão da TV Educativa do Rio, da TVE do Maranhão e da Radiobras, que estavam com seus sistemas de transmissão e produção totalmente sucateados. A adesão de emissoras estaduais à EBC para a constituição da rede pública é um processo ainda lento e que não soluciona os problemas de infraestrutura, uma vez que também as emissoras estaduais se encontram em situação precária. Recompor os recursos humanos e materiais é um desafio que está longe de ser solucionado.
Para não falar dos problemas relacionados à divisão do espectro radioelétrico e a farra das concessões de rádio e TV, que restringem a transmissão da TV Brasil há poucas regiões geográficas e em canais indecentes da banda. Quem sintoniza em São Paulo, por exemplo, o canal aberto 69? As pessoas nem sabem da existência de algo que não seja ruído depois do vinte e pouco.
No que diz respeito à conquista de audiência para uma TV em construção, com dificuldades técnicas e sem uma clara definição de programação, os desafios são imensos. Claro que audiência é um objetivo, mas ela é construída em médio e longo prazo tanto nas emissoras comerciais como na pública. Não há receita e nem mágica nesse campo, mas uma atuação coordenada e persistente.
Em síntese, a criação de uma empresa pública de radiodifusão no Brasil foi um avanço e uma conquista que não está consolidada. Ou seja, recuperar o projeto inicial, ampliar a participação social e conferir maior caráter público à iniciativa ainda são tarefas atuais, que podem ou não ser alcançadas.
Propaganda contrária da mídia hegemônica
Além desses desafios, que não são pequenos, a implantação da rede pública sofre ainda com a propaganda contrária da mídia hegemônica. Enxurradas de notícias, editoriais e comentários nos jornais, rádios, revistas e emissoras de televisão bombardeiam a iniciativa que eles caracterizam como interferência estatal no setor. Não seria de se esperar outra coisa, afinal o sistema de radiodifusão no Brasil nasceu e cresceu a partir do modelo comercial, sem praticamente nenhuma contrapartida social e de espírito público, ignorando o fato de que todo canal de televisão e rádio é uma concessão pública.
As notícias sobre a crise na EBC, sobre o ‘abandono’ dos conselheiros do Conselho Curador, da renúncia do presidente Luiz Gonzaga Belluzo, as críticas à gestão administrativa e ao conteúdo são insufladas pela mídia e objetivam desmoralizar o projeto até que ele sucumba. O fracasso da rede pública interessa apenas ao setor comercial, que têm o monopólio da fala.
Defender o projeto da rede pública de televisão é tarefa da sociedade e dos movimentos sociais. Isso não pressupõe, entretanto, a falta de visão crítica sobre o projeto que está em curso. É preciso denunciar a posição que a mídia hegemônica e os setores conservadores têm tido e tomar cuidado para não fazer coro com suas posturas. De outro lado, temos que fazer a crítica determinada sobre os desvios do projeto e pressionar para que a sociedade tenha mais participação na construção da nova rede.
Essa, sem dúvida, é um pauta fundamental nos debates da 1ª Conferência Nacional de Comunicação.
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