Para não dar margens a interpretações equivocadas do meu ponto de vista, quero em primeiro lugar afirmar o meu respeito à luta contra qualquer forma de discriminação - seja racial, de gênero, social, cultural. O fim do preconceito está intimamente ligado com o amadurecimento da sociedade.
Dito isto, acho que alguns setores e atores que militam em prol desta causa têm perdido um tanto da perspectiva do que significa de fato essa luta e adotado posturas intolerantes e intrasigentes, que resultam no cerceamento da liberdade artística e cultural.
Exemplo disso é o recente caso envolvento o veto que o Conselho Nacional de Educação impôs à aquisição por parte da administração federal do livro de Monteiro Lobato, "Caçadas de Pedrinho". O argumento do CNE, que deliberou sobre o assunto de forma unânime, é que o livro de Lobato possui trechos racistas. Para sustentar esta ideia, extrai do texto - e do contexto histórico - alguns trechos.
Uma ativista do movimento negro, ouvida pela reportagem da Agência Brasil, endossa a decisão do CNE. Marlene Lucas disse ser a favor da retirada de "Caçadas de Pedrinho" das escolas. “Tudo aquilo que agride a identidade das pessoas deve ser banido, seja de qual período for, independentemente da importância histórica e artística”, defende.
Sinceramente, este tipo de atitute é tão tresloucada que beira ao ridículo. A patrulha ideológica e do politicamente correto levada a estes níveis pode ter consequências desastrosas. Então, daqui a pouco estaremos como os nazistas, queimando livros ou rasgando obras de arte que agridem a identidade das pessoas.
Uma visão crítica sobre o tema me foi enviado por uma militante do movimento negro,que também discorda da decisão do CNE. É um pouco extensa, mas vale a leitura.
Assunto: Leitura Crítica - MONTEIRO LOBATO RACISTA
Quem paga a música escolhe a dança?
Marisa Lajolo
"Caçadas de Pedrinho", de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso. Narra as aventuras da turma do sítio de Dona Benta primeiro às voltas com a bicharada da floresta próxima e, depois, com uma comissão do governo encarregada de caçar um rinoceronte fugido de um circo. Nos dois episódios prevalecem o respeito ao leitor, a visão crítica da realidade, o humor fino e inteligente.
Na primeira narrativa, a da caçada da onça, as armas das crianças são improvisadas e na hora agá não funcionam. É apenas graças à esperteza e inventividade dos meninos que eles conseguem matar a onça e arrastá-la até a casa do sítio. A morte da onça provoca revolta nos bichos da floresta e eles planejam vingança numa assembléia muito divertida: felinos ferozes invadem o sítio e – de novo - é apenas graças à inventividade e esperteza das crianças (particularmente de Emília) que as pessoas escapam de virar comida de onça.
Na segunda narrativa, a fuga de um rinoceronte de um circo e seu refúgio no sítio de Dona Benta leva para lá a Comissão que o governo encarregou de lidar com a questão. Os moradores do sítio desmascaram a corrupção e o corpo mole da comissão, aliam-se ao animal cioso da liberdade conquistada e espantam seus proprietários. E, batizado Quindim, o rinoceronte fica para sempre incorporado às aventuras dos picapauzinhos.
Estas histórias constituem o enredo do livro que parecer recente do Conselho Nacional de Educação (CNE), a partir de denúncia recebida, quer proibir de integrar acervos com os quais programas governamentais compram livros para bibliotecas escolares. O CNE acredita que o livro veicula conteúdo racista e preconceituoso e que os professores não têm competência para lidar com tais questões. Os argumentos que fundamentam as acusações de racismo e preconceito são expressões pelas quais Tia Nastácia é referida no livro, bem como a menção à África como lugar de origem de animais ferozes.
Sabe-se hoje que diferentes leitores interpretam um mesmo texto de maneiras diferentes. Uns podem morrer de medo de uma cena que outros acham engraçada. Alguns podem sentir-se profundamente tocados por passagens que deixam outros impassíveis. Para ficar num exemplo brasileiro já clássico, uns acham que Capitu (D. Casmurro, Machado de Assis, 1900) traiu mesmo o marido, e outros acham que não traiu, que o adultério foi fruto da mente de Bentinho. Outros ainda acham que Bentinho é que namorou Escobar...!
É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito. Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias – da sala de aula ao Ministério de Educação- manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta face ao que lêem.
Infelizmente, estamos vivendo um desses momentos.
Como os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que quem paga o livro escolha a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Vermelho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se o final da história e re-escreve-se a letra da música porque se acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos. Trata-se de uma idéia pobre, precária e incorreta que além de considerar as crianças como tontas, desconsidera a função simbólica da cultura. Para ficar em um exemplo clássico, a psicanálise e os estudos literários ensinam que a madrasta malvada de contos de fada não desenvolve hostilidade conta a nova mulher do papai, mas
– ao contrário- pode ajudar a criança a não se sentir muito culpada nos momentos em que odeia a mamãe, verdadeira ou adotiva...
Não deixa de ser curioso notar que esta pasteurização pretendida para os livros infantis e juvenis coincide com o lamento geral – de novo, da sala de aula ao Ministério da Educação — pela precariedade da leitura praticada na sociedade brasileira. Mas, como quem tem caneta de assinar cheques e de encaminhar leis tem o poder de veto, ao invés de refletir e discutir, a autoridade veta. E veta porque, no melhor dos casos e muitas vezes com a melhor das intenções, estende suas reações a certos livros a um numeroso e anônimo universo de leitores...
No caso deste veto a "Caçadas de Pedrinho", Conselheira Relatora Nilma Lino Gomes acolhe denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende como manifestação de preconceito e intolerância de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas; (...) aponta menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano , que se repete em vários trechos do livro analisado e exige da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura.
Independentemente do imenso equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso.
O que a nota exigida deve explicar? O que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa ? Qual seria o conteúdo da nota solicitad? A nota deve fazer uma auto-crítica (autoral, editorial?), assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que "Caçadas de Pedrinho" é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC?
As questões poderiam se multiplicar. Mas não vale a pena. O panorama que a multiplicação das questões delineia é por demais sinistro. Como fecho destas melancólicas maltraçadas aponte-se que qualquer nota no sentido solicitado – independente da denominação que venha a receber, do estilo em que seja redigida, e da autoria que assumir - será um desastre. Dará sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada. E este modelito da mordaça de agora talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva queima de livros em praça pública, número medonho mas que de vez em quando entra em cartaz na história desta nossa Pátria amada idolatrada salve salve. E salve-se quem puder... pois desta vez a censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê!
Marisa Lajolo - Profª Titular (aposentada) da UNICAMP. Profª da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisadora Senior do CNPq. Organizadora, com João Luís Ceccantini do livro de Monteiro Lobato livro a livro (obra infantil), obra que recebeu o Prêmio Jabuti 2010 como melhor livro de não ficção.
Isso não é só mais um absurdo. É arrogância, hipocrisia, autoritarismo,(...)
ResponderExcluirOnde eles pensam que vão chegar? A quem querem esses hipócritas enganar? Que dívida esperam pagar? A quem querem agradar?
Devem esses indivíduos pedir perdão à literatura e à memória de Monteiro Lobato.
Sem dúvida, essa postura precisa urgentemente ser revista. Não podemos aceitar que a Literatura de um gênio, como o eterno Monteiro Lobato não esteja, amplamente disponível para a sociedade.Vamos nos manifestar e se mobilizar para o CNE recuar. Aguardamos retorno.
ResponderExcluirComo um "Conselho" pode cercear a "liberdade" de escolha e de expressão, diretos que nos foram rervados pela Constituição.
ResponderExcluirNão podemos ser privados de leitura seja ela qual for, ainda mais de Monteiro Lobato...
Então agora voltamos a Ditadura, esse pais é mesmo uma Democracia??
A atitude desta relatora e demais membros beira ao ridículo, a obra não tem nenhuma conotação racista, o que eu acredito ser racista são esse tresloucados e acho que nossa paciencia está no fim. Ridículo...arrogante...
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