Reproduzo abaixo artigo que escrevi para a revista Princípios sobre a urgência de uma nova lei geral para as comunicações e a omissão do governo Dilma em enfrentar essa pauta política.
A batalha
estratégica da comunicação
O debate
sobre a urgência de um novo marco regulatório para as comunicações
tem sido interditado pela mídia e negligenciado pelo governo. Porém,
esta é uma pauta estratégica para a democracia e para o avanço de
um novo projeto nacional de desenvolvimento. Desta compreensão
nasceu a campanha Para Expressar a Liberdade, que em 2013
lançará, como instrumento de luta política, um Projeto de Lei de
Iniciativa Popular para regular a comunicação.
A carência de visão
estratégica sobre o papel central que os meios de comunicação
ocupam no embate entre projetos políticos antagônicos em disputa no
Brasil é a principal razão para a total paralisia do governo diante
da mídia. A ilusão de que é possível promover mudanças
econômicas e sociais sem enfrentar a guerra ideológica é de uma
inocência cruel.
Os conglomerados
midiáticos transnacionais e nacionais atuam em uníssono para
perpetuar o modo de produção capitalista. O aparato ideológico que
os mass media representa vai muito além do poder isolado que
cada grupo econômico exerce na conjuntura política, ele tem caráter
estratégico para a acumulação do capital.
Não é possível
colocar em andamento um novo projeto nacional de desenvolvimento, que
efetivamente produza mudanças significativas na estrutura política,
econômica e social do país, sem enfrentar a batalha ideológica que
é desenvolvida pela mídia.
Países da América
Latina que estão construindo suas experiências de mudança –
Argentina, Uruguai, Equador, Bolívia, Venezuela – compreenderam
esse desafio e colocaram entre as prioridades de suas agendas
políticas propostas para criar um novo marco regulatório para as
comunicações.
As reformas da
comunicação empreendidas por estes países têm um núcleo comum:
combater o monopólio e a propriedade cruzada das empresas de
comunicação, regular a atuação dos diferentes agentes econômicos
– empresas de telecomunicações, radiodifusores, produtoras de
conteúdo, jornais, revistas –, estimular o surgimento e
crescimento de um campo público de comunicação para promover
diversidade e pluralidade, e tornar a ocupação dos espaços mais
democráticos e transparentes.
As legislações
construídas são de viés republicano e, apesar de não alterarem o
núcleo central de poder que a mídia possui, elas abrem espaços
para um melhor enfrentamento da guerra ideológica e política que
está em curso. Isso porque se conformam novos campos e se criam
espaços de combate à visão uniforme da mídia hegemônica.
E, como afirmou
recentemente o professor Dênis de Moraes, o Brasil está na
vanguarda do atraso neste front. A letargia do Estado em abrir
publicamente uma discussão sobre um novo marco regulatório para as
comunicações poderá custar ao povo um preço demasiadamente caro:
interromper o projeto político que se iniciou há 10 anos, quando o
país elegeu Lula presidente.
Vazio regulatório
No Brasil, assim como
na América Latina, o sistema de mídia se instalou, desde o início,
como sistema privado. A radiodifusão aberta seguiu o modelo
comercial de concessão em um ambiente de vazio regulatório, que
permitiu aos grupos econômicos que exploram essas concessões o
fazerem sem a observância de qualquer critério econômico, social
ou cultural.
Ao longo dos anos, a
desorganização legal das comunicações só se aprofundou,
principalmente com o surgimento de novas tecnologias. O Código
Brasileiro de Telecomunicações data de 1962 e está totalmente
defasado política e tecnologicamente.
Em 1988, a Constituição
da República Federativa do Brasil incorporou princípios e
diretrizes para que o legislador brasileiro pudesse, posteriormente,
construir um arcabouço de leis infraconstitucionais para regular o
setor.
As diretrizes presentes
no Capítulo da Comunicação Social da Constituição guardam
semelhança com conteúdo do núcleo central das leis construídas
nos países latino-americanos citadas acima: não permitir que a
comunicação seja objetivo de monopólio; proteção da infância e
da criança de programação não recomendada; direito de resposta;
restrição à propaganda de produtos que possam ser nocivos à saúde
e ao meio ambiente; dar preferência às finalidades informativas,
artísticas, culturais e educativas nos meios de comunicação social
eletrônicos; estimular a produção regional e independente;
garantir a complementariedade dos sistemas públicos, privados e
estatal na radiodifusão, entre outros.
Vinte e cinco anos nos
separam da promulgação da Constituição. Mas, até hoje, o
legislativo se omitiu diante da responsabilidade de regulamentar a
maioria dos artigos da Carta Maior. Foi o que motivou o jurista Fábio
Konder Comparato a assinar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
por Omissão do Congresso Nacional (ADO). Sustenta Comparato: "Em
conclusão, passadas mais de duas décadas da entrada em vigor da
Constituição Federal, o Congresso Nacional, presumivelmente sob
pressão de grupos empresariais privados, permanece inteiramente
omisso no cumprimento de seu dever de regulamentar os princípios que
regem a produção e a programação das emissoras de rádio e
televisão (art. 221); bem como igualmente omisso no estabelecer os
meios legais de defesa da pessoa e da família, quando tais
princípios não são obedecidos (art. 220, § 3°, inciso II)”.
A ADO também questiona
a omissão do Congresso no que diz respeito ao combate contra o
monopólio. “Se o combate ao abuso de poder representa entre nós
um preceito fundamental da ordem econômica (Constituição Federal,
art. 173, § 4°), o abuso de poder na comunicação social constitui
um perigo manifesto para a preservação da ordem republicana e
democrática. Na sociedade de massas contemporânea, a opinião
pública não se forma, como no passado, sob o manto da tradição e
pelo círculo fechado de inter-relações pessoais de indivíduos ou
grupos. Ela é plasmada, em sua maior parte, sob a influência,
preponderantemente sentimental e emotiva, das transmissões
efetuadas, de modo coletivo e unilateral, pelos meios de comunicação
de massa”.
O mercado fala
sozinho
Para o mercado esta é
a situação ideal. Qualquer tentativa de discutir a regulamentação
da Constituição e definir regras para balizar o setor é alardeada
como atentado à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa.
E, posto que eles detém
o monopólio da fala, da exibição de imagens e da veiculação de
ideias, a mensagem repetida milhares de vezes de que regulação é
igual a controle e censura se transformou em senso comum.
A tal ponto que até os
juizes do Supremo Tribunal Federal caíram no canto da sereia da
liberdade de imprensa como algo que está acima, inclusive, dos
direitos individuais da pessoa, numa visão ultra-liberal que não
cabe nem nos países que são berço do liberalismo, como Inglaterra
e Estados Unidos.
Liberdade de
expressão ou de empresa?
Os poucos casos de
regulação que contaram com a iniciativa do Legislativo – como a
aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente que resultou na
portaria do Ministério da Justiça para a classificação indicativa
das obras audiovisuais, e a aprovação da nova lei de TV por
assinatura – estão sendo interpelados judicialmente por parte das
empresas, questionando a constitucionalidade dos dispositivos
regulatórios que contrariam os interesses das empresas de
comunicação.
A vinculação horária
para a classificação indicativa de produtos audiovisuais é um
comando explícito da Constituição. No entanto, por contrariar o
modelo de negócios das empresas, estas querem desvincular a faixa
horária. Ou seja, um programa com cenas de violência e sexo que
seja classificada para maiores de 18 anos poderá, segundo a visão
dos empresários, ser exibida em qualquer horário da grade,
mantendo-se a orientação da classificação. O início da votação
no Supremo Tribunal Federal foi estarrecedor. O voto do ministro
relator Dias Toffoli, e de outros 3 ministros, foi a favor da
desvinculação. O principal argumento é que qualquer interferência
na comunicação é censura e que não cabe ao Estado a tutela da
família. Nas palavras da ministra Carmen Lúcia: ‘se a programação
não for adequada desliga-se a TV’, visão que ratifica a posição
dos concessionários públicos de radiodifusão de que a eles não
cabe nenhuma responsabilidade pelo que é veiculado em uma concessão
pública.
Em recente visita ao
Brasil, o relator especial da Organização das Nações Unidas para
Liberdade de Expressão, Frank La Rue, manifestou consternação
diante do posicionamento da Corte brasileira. Para ele não existe o
suposto conflito apontado pelo STF entre liberdade de expressão e
direitos das crianças e adolescentes.“Não posso entender que em
algum país uma Corte Suprema esteja disposta a prejudicar os
direitos das crianças por conta de outros interesses”.
O engodo do controle
remoto
A alternativa oferecida
pelos veículos de comunicação aos que estão descontentes com o
conteúdo do que está sendo oferecido é o livre-arbítrio: não
gostou, não leia, não assista, não ouça. Ou seja, use o controle
remoto. Esse discurso foi tristemente assumido no discurso de
ministros do STF e inclusive da presidente da República, Dilma
Roussef.
As empresas de
comunicação se eximem da responsabilidade do que é produzido e
veiculado e a repassa para o telespectador. Mas, afinal, para que
serve o controle remoto? Serve para dar ao telespectador a sensação
de que ele detém o poder sobre a programação. Nada mais.
Falta vontade
Desconstruir um senso
comum é tarefa de vulto, ainda mais quando não se possui os mesmos
instrumentos de comunicação daqueles que o criaram. O senso comum é
algo inquestionável, uma verdade que não requer explicação, não
é fruto nem alvo de reflexão. Desta forma, o debate fica
interditado pela imposição do mercado e pela falta de iniciativa do
governo.
O que é no mínimo
curioso, uma vez que o governo e as forças políticas que têm
sustentado o projeto de mudanças no país têm sido alvo incessante
do ataque feroz da mídia nacional, que assumiu o papel de oposição
política no país. E, a cada derrota eleitoral que o setor
conservador amealha, a mídia sobe o tom dos ataques e fica mais
raivosa. A mídia ataca o projeto de mudanças e vai destruindo a
reputação das lideranças políticas que o conduzem. Foi assim com
o crise do mensalão e com a votação da ação penal 470, com as
denúncias contra ministros no início do governo Dilma e, para não
me estender em exemplos, na recente cobertura negativa da redução
do preço da energia elétrica.
Apesar disso, o núcleo
central do governo permanece irredutível e, como recentemente
divulgado pela imprensa, a presidente decidiu manter engavetado o
projeto de um novo marco regulatório para as comunicações.
Para expressar a
liberdade
Afinal, quem vai ousar
dizer que no Brasil vivemos um ambiente de violação da liberdade de
expressão? Que os meios de comunicação padecem de espaços
democráticos, que não há diversidade e pluralidade na mídia? Que
as comunicações no Brasil são objeto de um monopólio nocivo à
democracia? Ou que, como diz Maria Rita Kehl, “na sociedade do
espetáculo toda imagem, mesmo a imagem jornalística, mesmo a
informação mais essencial para a sociedade, tem o caráter de
mercadoria, e todo acontecimento tem a dimensão do aparecimento”.
O tamanho do desafio
dos setores que estão discutindo a urgência de o Brasil construir
um novo marco regulatório das comunicações é grande: combater a
visão de que regulação é censura e colocar este tema na agenda
pública nacional; mostrar que nas democracias tidas como exemplo
para o setor conservador existe sim regulação da comunicação na
sua dimensão de atividade econômica e inclusive, para o horror dos
empresários brasileiros, em questões de conteúdo para garantir
diversidade, pluralidade e impedir infrações aos direitos humanos.
E mostrar que é papel do Estado fazer esta regulação.
Este combate se dá em
três frentes: pressão junto ao governo para que este abra o debate
público; mobilizar os setores organizados da sociedade em torno da
necessidade de todos os movimentos incorporarem a luta pela
democratização das comunicações nas suas pautas políticas
específicas; e a tentativa de ampliar o debate para toda a
sociedade, procurando desfazer o mito criado pela mídia de que eles
são os mandatários da liberdade de expressão.
Estes são os objetivos
da iniciativa que o Fórum Nacional pela Democratização da
Comunicação – FNDC e diversas organizações almejam com a
campanha Para Expressar a Liberdade, Uma nova lei, para um novo
tempo. Lançada em 27 de agosto de 2012 – data em que o CBT
completou 50 anos – a campanha pretende mobilizar um grande
contingente de forças sociais e incidir sobre a atual correlação
de forças que emperra o debate sobre a comunicação no Brasil.
Munida da plataforma 20
pontos para uma comunicação democrática a campanha será
intensificada no ano de 2013. A estratégia é ousada: coletar 1
milhão e quinhentas mil assinaturas para um Projeto de Lei de
Iniciativa Popular para regulamentar a comunicação. Se o governo
não se move e o Congresso se omite, cabe a sociedade a tarefa de
impulsionar o debate.
Entre as diversas
iniciativas já tomadas pela campanha foi a de trazer, no final de
2012 para o Brasil, o relator da ONU para a Liberdade de Expressão.
Frank La Rue aceitou o convite do FNDC e cumpriu uma intensiva agenda
institucional em Brasília, além de participar de debates públicos
no DF e em São Paulo. Em reunião com o ministro Gilberto Carvalho,
o FNDC fez formalmente a solicitação para que o Estado brasileiro
convide o relator da ONU para uma visita oficial. A importância
disso é que, a presença oficial do relator da ONU produzirá um
relatório sobre a situação da liberdade de expressão no país
elencando um conjunto de recomendações ao governo, o que pode
contribuir para impulsionar o Palácio no sentido de abrir o debate.
Mudanças precisam
de impulso
É certo que muita
coisa mudou no Brasil de 2003 para cá. As mudanças foram
impulsionadas pela alteração no papel do Estado, que passou a ser
mais pró-ativo, pela força de novas políticas públicas, pela
emergência de governos latino-americanos com compromissos
progressistas e de ruptura com o neoliberalismo que fortalecem um
novo bloco econômico, principalmente em meio a um cenário
internacional marcado por uma crise mundial do capitalismo.
Tivemos mudanças na
política externa, avanços importantes na área social, a economia
cresceu e foi possível, a partir de uma combinação de fatores e
ações, reduzir o desemprego e melhorar a renda dos brasileiros.
Mas para acelerar essas
mudanças e aprofundar a democracia, é preciso ativar o movimento
social para impulsionar o governo a assumir agendas que são
estratégicas para a democracia e para um novo projeto de
desenvolvimento. Por isso é imperativo que o conjunto dos movimentos
sociais se integrem de forma pró-ativa na luta por um novo marco
regulatório das comunicações.
Biografia
Renata Mielli é
jornalista, Secretária Geral do Centro de Estudos da Mídia
Alternativa Barão de Itararé e integra a executiva do Fórum
Nacional pela Democratização da Comunicação. Editora da revista
Presença da Mulher. É organizadora do livro Comunicação Pública
no Brasil – Uma exigência democrática.
Bibliografia
Kehl, Maria Rita e
Bucci, Eugênio. Videologias, ensaios sobre a televisão. Coleção
Estado de Sítio, Boitempo Editorial, 2004.
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