Nesta terça-feira, 21/07, o Estadão publicou um artigo assinado por Alexandre Barros defendendo o fim da regulamentação de TODAS as profissões. Uma verdadeira panacéia a auto-regulação do mercado. Com argumentos rasos e simplórios ele ataca a profissionalização da medicina, advogacia, farmácia, engenharia. Abaixo, reproduzo artigo da presidente da Fenafar, Célia Chaves, que enviamos para publicação no Estadão. O jornal, como tem sido a praxe da grande mídia, agradeceu mas disse que não iria publicar o artigo. Afinal, para eles não vale o exercício salutar do debate, da contraposição de ideias e pontos de vista. Para quem não leu e quiser dar uma olhadinha nos argumentos de Barros, clique aqui. Abaixo a resposta não publicada.
Regulamentação profissional e responsabilidade social
Imagine um mundo onde estejam extintas, por decreto, as exigências de qualquer tipo para se atuar numa área profissional. Isso mesmo, um mundo onde qualquer um possa exercer a Medicina, ou a Advocacia, a Engenharia, a Química, a Odontologia. Para tanto, bastariam apenas a aptidão e a dedicação. Este é o mundo idealizado pelo cientista político Alexandre Barros, em artigo publicado neste Estado de S.Paulo em 21 de julho.
O raciocínio do PhD pela University of Chicago – templo do liberalismo econômico – é bem simples: “Regulamentações profissionais só protegem os prestadores de serviços e excluem concorrentes que poderiam prestar os mesmos serviços, só que mais barato”.
Ele argumenta que a regulamentação não traz nenhum benefício à sociedade. Talvez Barros esteja projetando para o presente e para o futuro uma situação que fez parte do passado da humanidade: onde a investigação intuitiva e empírica era imprescindível para a construção do conhecimento, onde a sociedade desvendava o corpo humano, a matéria, os insumos disponíveis na flora, e onde as ciências, tais quais a conhecemos hoje, estavam em processo de formação.
No entanto, a sociedade do século XXI não é esta, nem tampouco a idealizada em filmes de ficção científica onde, basta pousar as mãos sobre um corpo adoecido para reestabelecer a saúde. Não. Vivemos numa sociedade complexa, que não pode prescindir das mediações públicas e das responsabilidades de seus atores no exercício da cidadania e das profissões, que em certas áreas atingiram um nível extraordinário de especialização.
Barros diz que não seria necessário um médico formado “para nos dizer que temos 2,5 graus de miopia”, que não seria necessário um advogado “para prestar serviços corriqueiros sem complexidades ou consequências jurídicas maiores” e que na compra do Cialis – fármaco concorrente do Viagra – você paga todos os custos de pesquisa e desenvolvimento, “mas há, um inútil, que você paga e não se dá conta: o salário do farmacêutico responsável da filial da empresa que produz o Cialis no Brasil”.
Infelizmente, as coisas não são tão simplórias como sugere o PhD de Chicago. No caso da medicina, imagino que nem mesmo Barros substituiria um tratamento de câncer com especialistas para usar terapias alternativas com extratos de sementes de pêssego, como ele sugere em seu artigo. Na advocacia, ele mesmo abriu a brecha para aferirmos que, no caso de ações complexas e com consequências jurídicas maiores, talvez seja aconselhável consultar um advogado.
No que diz respeito ao farmacêutico – taxado de um inútil que nada tem a ver com os benefícios do remédio e que só está na farmácia “para lhe vender a caixinha dos comprimidos mágicos”, porque conseguiram aprovar uma lei no Congresso Nacional garantindo este espaço –, afirmo que o Sr. Barros ou desconhece totalmente o tema ou está sendo leviano.
O farmacêutico, muitas vezes chamado de bioquímico, ao lado de outros profissionais, responde – não por lei, mas por conhecimento e domínio do processo – por todas as etapas de produção dos medicamentos disponíveis no mercado. Sem estes profissionais não existiriam os medicamentos que tanto tem beneficiado a humanidade. Mesmo os medicamentos desenvolvidos no exterior, são industrialização no Brasil, e tratam-se de produtos que podem salvar vidas, ou ceifá-las – o que diferencia o medicamento do veneno é a dose, já diz a sabedoria popular. O farmacêutico não esta ali só por uma exigência legal, mas como garantia da qualidade do produto.
A presença do farmacêutico na farmácia é uma conquista da categoria, mas que beneficia toda a sociedade. Engana-se Barros ao afirmar que o farmacêutico está na farmácia para vender o medicamento. De forma nenhuma. Estamos lá para orientar a população e impedir a venda e o uso indiscriminado deles, já que os índices de intoxicações por uso indevido de medicamentos são alarmantes no Brasil.
Medicamento não é mercadoria – apesar de no capitalismo desregulamentado, sonhado na University of Chicago, tudo e todos nos trasformamos nela. É o que Marx chamou de fetichismo da mercadoria.
O farmacêutico é um profissional de saúde, a farmácia é um estabelecimento de saúde e o medicamento um insumo de saúde. Por isso, lutamos para que o Brasil tenha uma Política Nacional de Assistência Farmacêutica, que tem como diretriz o acesso adequado ao medicamento, para uma finalidade específica, em dosagem correta, por tempo adequado e cuja utilização racional tenha como consequência a resolutividade das ações de saúde.
Nesse sentido a Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar), ao lado de outras entidades da área da saúde, tem lutado para que o Estado brasileiro promova políticas públicas que garantam a todos o acesso ao medicamento e aos serviços de saúde. Temos mobilizado os farmacêuticos em simpósios, seminários e congressos, como o que será realizado nos dias 13 a 15 de agosto, para debater as questões relativas à profissão e a sua aproximação das necessidades sociais cada vez mais candentes.
O que está em jogo, não é a concorrência desenfreada para atingirmos uma sociedade que se auto-regule para ofertar os preços mais baixos – esta é a visão do capitalismo neoliberal pregado pelo Consenso de Washington que levou o mundo a uma de suas maiores crises econômicas – mas a construção de uma sociedade de direitos e deveres, que promova mais justiça social, desenvolvimento e soberania para as nações, eliminando misérias e desigualdades.
Para isso, queiram os liberais de plantão ou não, na fase atual de nossa sociedade, é necessário haver um Estado mediador das relações sociais. É necessário profissões regulamentadas que protejam o trabalho, o trabalhador e a sociedade na oferta de serviços qualificados.
Célia Chaves
Doutora em Farmacologia pela Universidade de São Paulo, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos.
é vergonhoso o desrespeito com profissões tão imprescindíveis. também é vergonhosa a inércia nos processos de regulamentação das profissões.
ResponderExcluirabs.
Parabéns pela resposta. Ainda bem que estamos presenciando um novo paradigma na imprensa mundial. Mesmo que os jornais e revistas censurem o direito ao debate, a internet nos dá plenas condições de sermos ouvidos. Chegaremos em um dia, que as pessoas buscarão informações principalmente na internet, e não se satisfarão em apenas consumir a informação. Elas irão querer expressar sua opinião. Aí, Estadão, ou vocês deverão abrir o jornal para o debate ou ficarão ultrapassados. Abraços
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