A nova lei da TV por assinatura (12.485) é produto da mediação entre interesses de vários setores econômicos e sociais. Foram quatro anos de debates
acirrados e muita negociação – envolvendo agentes de muita força econômica e política – até sua aprovação pelo Congresso Nacional.
Agora, em fase de consulta pública sobre a regulamentação da camada audiovisual, as principais polêmicas que envolvem a
lei estão de volta, mas desta vez sendo travadas sem a presença explícita dos
agentes econômicos. A tática de se movimentar nos bastidores está
dificultando a identificação de aliados e adversários nesta discussão. Isso ficou claro nas audiências públicas
promovidas pela Ancine para discutir as propostas de regulamentação.
Os principais questionamentos que apareceram nas audiências
públicas partiram principalmente dos movimentos sociais e dos produtores
independentes e se concentraram na caracterização de controle (que incide diretamente sobre a discussão do monopólio); na regulamentação do cumprimento das cotas de produção nacional e independente (incluem-se neste ponto as questões relativas à dispensa de cumprimento e, também, dispositivos de incentivo à competição); e no papel fiscalizador da Ancine.
Omissão não é
esquecimento
A polêmica em torno da definição de pessoa jurídica
controlada só existe porque a lei 12.485 não determina qual caracterização
de relação de controle deve ser seguida obrigatoriamente pelas agências
reguladoras. Mas, por outro lado, está explicito qual deve ser o conceito de
empresa coligada: o que consta da resolução 191 da Anatel.
Essa omissão não foi um
esquecimento do legislador. Ao contrário. Várias das lacunas no texto final não
são acidentais, mas produto da correlação de forças que se estabeleceu no
processo de discussão da lei.
Durante a audiência, os
representantes da Ancine foram bastante questionados sobre esse tema e
responderam que, uma vez que a lei não disciplinava a questão, a agência
procurou se apoiar na legislação que lhe dava mais segurança jurídica para atuar
num mercado com grande diversidade de agentes econômicos, por isso optou pela
Lei da S/A.
A escolha do freguês
A escolha só foi possível porque, no Brasil, há mais de um critério consolidado para
caracterizar relações de controle – um ditado pela Lei da S/A, outro pela Instrução 247 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e pelo artigo 1097 do Código Civil, e há, ainda, a resolução 101 da Anatel. Isso se não houver outros.
Algumas são mais rígidas e
incluem os acordos de acionistas e outros instrumentos de gestão interna para caracterizar controle, outras não levam em
conta estas relações e permitem uma interpretação mais branda.
A Ancine utilizou como parâmetro para caracterização de controle a Lei da S/A, que adota critérios mais flexíveis. Essa opção tem trazido algumas inseguranças, porque pode nublar relações de controle existentes de fato e
que podem desvirtuar o espírito da lei. Um exemplo é o poder de veto de acionistas minoritários na definição de inclusão de canais por programadoras e empacotadoras.
É
importante que essa questão seja acompanhada de perto pela sociedade e,
inclusive, dialogada com a agência no sentido de haver, ainda durante o
processo de consulta da regulamentação, dispositivos que dotem a Ancine de
instrumentos para impedir que isso aconteça. Vale observar que há vários pontos da lei que, se vistos em conjunto, podem contribuir para evitar que isso ocorra.
O que está em jogo nesta discussão são as relações monopolistas do mercado audiovisual, que para serem enfrentadas de fato é preciso haver decisão política por parte do governo.
O cumprimento das cotas
O estabelecimento de cotas
foi um dos principais motivos da guerra promovida por parte considerável dos
agentes econômicos contra a aprovação da lei e mesmo depois dela, já que a Sky
entrou com uma ação no STF arguindo a inconstitucionalidade das cotas.
Devido à forte pressão destes
agentes econômicos, foi incluído na lei um artigo que abre a possibilidade de
dispensa do seu cumprimento. Está no Artigo 21 da Lei: Em caso de comprovada impossibilidade de cumprimento integral do
disposto nos arts 16 a 18, o interessado deverá submeter solicitação de
dispensa à Ancine, que, caso reconheça a impossibilidade alegada,
pronunciar-se-á sobre as condições e limites de cumprimento desses artigos.
Como regulamentar esse artigo
estabelecendo critérios transparentes e que não desvirtuem um dos objetivos da
lei, o de promover o audiovisual nacional e independente?
A Ancine enfrentou esse imbróglio no artigo 33 da sua Instrução Normativa. Mas, a proposta está gerando um desconforto grande por parte do movimento social, receoso de que os pontos propostos pela agência resultem numa fragilização da lei.
Art. 33. Em caso de comprovada impossibilidade de
cumprimento integral do disposto no art. 21 ou no art. 26, o interessado deverá
submeter solicitação de dispensa à Ancine, que, caso reconheça a
impossibilidade alegada, pronunciar-se-á sobre as condições e limites da
dispensa integral ou parcial do cumprimento das obrigações, conforme
regulamento específico.
§ 1º A Ancine poderá reconhecer a impossibilidade de
cumprimento integral do disposto no art. 22 desta IN, levando em consideração,
entre outros, os seguintes fatores:
I - porte econômico da empresa, consideradas suas
relações de vínculo, associação, coligação ou controle;
II - tempo de atuação no mercado audiovisual brasileiro;
III - perfil da programação;
IV - número de assinantes do(s) canal(is) de programação.
II - tempo de atuação no mercado audiovisual brasileiro;
III - perfil da programação;
IV - número de assinantes do(s) canal(is) de programação.
Muito questionada sobre esse
assunto, a Ancine já informou que haverá a edição de uma Instrução Normativa
específica para regulamentar o Artigo 22 da lei, e que a menção feita na IN
em debate é apenas para elencar critérios gerais.
Primeiro é preciso reconhecer
que quem abriu a brecha para o não cumprimento da cota não foi a Ancine, mas a própria
lei. Cabe a Ancine regulamentar esse dispositivo, evitando que esta brecha a
desvirtue.
Pelo que se pode verificar na redação do caput do Art 33, a Ancine está se pautando pela ótica da competição para regulamentar a matéria. Ou seja, porte econômico, tempo de atuação no mercado e número de assinantes. Do ponto de vista de viabilizar a entrada de novos agentes econômicos no mercado do SeAc a proposta pode ter sentido e, parece, um bom caminho para regular o artigo 22. É preciso explicitar, na regulamentação específica, prazos máximos para essa adequação econômica, deixando claro que os pedidos de dispensa terão validade e não poderão ser renovados. Depois disso, o solicitante deverá passar a cumprir o que está previsto na lei 12.485.
Pelo que se pode verificar na redação do caput do Art 33, a Ancine está se pautando pela ótica da competição para regulamentar a matéria. Ou seja, porte econômico, tempo de atuação no mercado e número de assinantes. Do ponto de vista de viabilizar a entrada de novos agentes econômicos no mercado do SeAc a proposta pode ter sentido e, parece, um bom caminho para regular o artigo 22. É preciso explicitar, na regulamentação específica, prazos máximos para essa adequação econômica, deixando claro que os pedidos de dispensa terão validade e não poderão ser renovados. Depois disso, o solicitante deverá passar a cumprir o que está previsto na lei 12.485.
Contudo, há um quarto fator
previsto no artigo 33 da IN da Ancine que não está relacionado diretamente à
promoção de novos agentes econômicos, mas sim ao “perfil da programação”, que
fica mais detalhado no artigo 34:
Art. 34. Em caso de comprovada impossibilidade do
cumprimento integral do disposto no inciso I do art. 23 desta IN ou do
cumprimento integral das obrigações do art. 22 desta IN devido a divergência significativa do perfil de programação a que se
propõe o canal de programação, a programadora poderá submeter solicitação
de transferência de obrigação entre seus canais de programação à Ancine, que,
caso reconheça a impossibilidade alegada, pronunciar-se-á sobre as condições e
limites da transferência das obrigações. (grifo
meu)
Aqui pode residir uma
armadilha perigosa para o cumprimento da lei. Como caracterizar divergência
significativa do perfil de programação? Compreende-se que há canais dedicados
a, por exemplo, exibição dos clássicos de Hollywood. Mas estes canais, ao constituírem
Espaço Qualificado, não devem se adequar as cotas? O recurso da transferência
de obrigação não poderá gerar uma distorção, fazendo com que canais mais “nobres”
aleguem divergência de perfil para transferir as cotas para um canal
secundário?
A questão aqui não é negar a
pertinência desta discussão, mas talvez ganhar mais tempo para enfrentá-la
adequadamente. Uma saída, então, já que haverá instrução normativa para
disciplinar esse tema, seria excluir desta IN geral o inciso III que fala do
perfil da programação, já que o caput prevê a observância de outros fatores.
Papel fiscalizador da
Ancine
A consulta da minuta alterando a Instrução Normativa 91 para se adequar a lei 12.485 suprimiu dispositivos que podem fragilizar o papel fiscalizador que a agência passará a desempenhar. Por exemplo, a supressão do parágrafo primeiro do artigo 4º, que prevê sanções aplicadas pela Ancine aos agentes econômicos que não informarem no ato dos seus registros as relações de coligação e controle.
Num cenário em que se optou por adotar regras mais flexíveis para caracterizar essas relações, é fundamental que todos os dispositivos de fiscalização da Ancine, inclusive os que prevejam sanções, sejam mais rígidos para impedir que os agentes econômicos burlem a lei.
Questionado sobre esse tema, os representantes da Ancine
afirmaram que haverá uma consulta pública para discutir as propostas de atualização
da Instrução Normativa 30, que regulamenta o procedimento administrativo para
aplicação de penalidades por infrações cometidas nas atividades
cinematográficas e videofonográfica, e que a opção da agência será de
concentrar nesta IN todas as questões relativas a estas sanções e, por isso, as
exclusões na IN 91.
Pressão e diálogo
para avançar
A audiência mostrou grande disposição de diálogo por parte
da Ancine, que através de seus representantes reiteraram que esta é uma matéria
complexa e o procedimento é novo para a agência.
Os movimentos sociais e de luta pela democratização da comunicação precisam ter participação ativa nesse processo, sempre defendendo os interesses da população e do país.
Por isso, é fundamental encaminhar contribuições às
consultas públicas que garantam a promoção da pluralidade, do conteúdo nacional e
independente, apontando os equívocos e lacunas nas propostas de regulamentação da
Ancine, e defendendo os dispositivos que estão sob questionamento dos
conglomerados econômicos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário